SULear vs NORTEar

Geopolítica SULeada sem perder boas ORIENTações
Tempo, espaço, lugar e educação

SULear: uma nova leitura do mundo

Marcio D’Olne Campos

SULear é uma proposta iniciada nos anos 90 que tem como um dos objetivos contextualizar criticamente no Hemisfério Sul, as noções e práticas sobre orientação espacial aqui ensinadas. Em geral, as técnicas tradicionais que usamos para nos situar no espaço são importadas do Norte sem, nem ao menos, uma devida recontextualização. Por isso, vamos trabalhar nesse site com conceitos que vão além do aspecto espacial (geográfico, cartográfico e astronômico) que discutiremos inicialmente. Uma vez que Norte e Sul (como categorias socioculturais e econômicas) transcendem a cartografia e a divisão em dois Hemisférios, abordaremos também as consequências ideológicas e geopolíticas das escolhas de orientação.

SULear propõe uma crítica à colonialidade[1] configurada em diversas formas de dominação de saber e de poder. Estas vêm sendo perpetuadas desde a “descoberta” (ou inauguração) das Américas e posteriormente reforçadas pela modernização dos modos de vida, produção e mercantilização. Em oposição, queremos contribuir para o reconhecimento e a importância da existência de diferentes consciências identitárias, assim como para os processos de comunicação e cognição. Impõe-se que tais processos sejam marcados pela reciprocidade e pelo respeito à diversidade sociocultural de todas as populações sobre o globo.

Cabe-nos pensar um SUL livre de hegemonias e de dominações de poder e de saber, um SUL que consiga produzir uma consciência crítica e que também se torne desenvolvedor de ações importantes para populações que vivem em condições subalternas. Tais condições existem até mesmo no Hemisfério Norte, que em geral é representado como hemisfério superior na grande maioria dos globos terrestres e mapas-múndi disponíveis no mercado.

Discussões sobre as dualidades e oposições relacionadas a esta introdução aparecerão ao longo do site. Em particular, nosso amigo e antropólogo mexicano Mariano Baez enfatizará uma discussão sobre aspectos geopolíticos em seu em seu texto “Buscando um Norte às avessas”.

Procuraremos também desenvolver hábitos de observar e “escavar” criticamente alguns fenômenos, modos de pensar, fazer e agir, muitas vezes originários de outros contextos naturais e sociais, assim como estranhos aos nossos modos de viver e ler-o-mundo. Hábitos e fenômenos, ou modos de agir e pensar que foram enraizados de tal forma que nos condicionam a aceitarmos sem profunda reflexão crítica sobre a que é “importado”. Assim, vivemos com saberes e fazeres estrangeiros como se eles estivessem prontos para integrar o dia-a-dia do nosso ambiente natural e social. Mais adiante, discutiremos sobre a importância das direções de orientação espacial que decorrem dos pontos cardeais e dos artefatos usados para encontrá-los.

Como proposta geral, SULear é refletir e agir sobre isso, é insistir numa releitura crítica do mundo, onde, por exemplo, os globos terrestres e mapas nos quais o Sul sempre aparece do lado de baixo – no Hemisfério “inferior”. Devemos, portanto, nos dedicar a esmiuçar o nosso entorno e, em lugar de aceitar tacitamente o que nos é ou foi ensinado. É preciso problematizar. Devemos criar problemas durante nossa leitura do mundo, mesmo quando a solução parece evidente. É fundamental que sempre se pense sobre o óbvio que não foi pensado.

Você vai encontrar algumas destas questões ao longo do site e em particular na seção “Curtas”. Por hora, sigamos SULeando-nos com os pontos cardeais.

Notas

[1] Colonialidade: Edgardo Lander, A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas, CLACSO, Buenos Aires, 2005 (278 pags) http://biblioteca.clacso.edu.ar/


SULear vs NORTEar

ORIENTações

Desde as civilizações mais antigas, os humanos contemplaram e se guiaram pelos astros para marcar o tempo, assim como para sua organização social (governo, caça e coleta, agricultura, rituais), para a navegação e para outras finalidades. Sempre existiu também a necessidade de percepção espaço-temporal e orientação espacial.

ORIENTar-se no planeta Terra é saber, de modo aproximado, localizar um dos pontos cardeais na direção do ORIENTE ou do nascer do Sol: o LESTE.

Para se situar ou se guiar, em geral, indistintamente nos dois Hemisférios é ensinado que se deve partir do sol nascente. Ao contrário, para a noite, se recorre a diferentes estrelas em cada um dos hemisférios. É neste ponto que aparecem tensões entre o ensinado e o que pode ser observado em cada um dos hemisférios, como discutiremos a seguir.

Estando na metade Norte do Planeta

 No Norte aponta-se a mão direita para o lado do Sol nascente que é o lado LESTE. Com isso, no plano do horizonte, são associadas as outras três direções perpendiculares ou os outros pontos cardeais: Norte, Oeste (ou W) e Sul. Esta regra nos coloca de frente para o Norte concretizando assim os atos de ORIENTAr-se e NORTEar-se. Se estivermos à noite no Hemisfério Norte, a direção Norte se confirma ao enxergarmos a Estrela Polar quase coincidente com o ponto em que o eixo polar da Terra (S-N) “fura” o céu. Este é o Polo Norte Celeste (PNC) que justifica o nome atribuído à estrela. A partir daí, apontando-se para a Polar, baixa-se a mão até o horizonte para encontrar a direção do norte geográfico.

Estando na metade Sul do Planeta

À noite, no Hemisfério Sul, não se vê a Estela Polar, pois ela está sempre abaixo do horizonte. Recorre-se então à constelação do Cruzeiro do Sul que devido à rotação da Terra, circula em torno do Polo Sul Celeste (PSC) e apresenta sempre o braço maior da cruz apontando para o centro do círculo, o PSC. A partir deste ponto define-se no horizonte a direção do sul geográfico[1]. Este ato – apropriado ao Hemisfério Sul – é o de SULear-se. É evidente que desta referência noturna, também se pode deduzir os outros pontos cardeais.

Nota-se que para observarmos o Cruzeiro do Sul devemos olhar para o Sul, mas para que esta observação seja possível estaremos com o nosso lado esquerdo voltado para o Leste, Oriente. Desta forma, para situar e adequar nossas orientações ao Hemisfério Sul, a regra prática do nascer do Sol deve ser alterada. Nesse caso, apontando agora o braço esquerdo para o lado do nascer do Sol, teremos enfim, o Sul à nossa frente permitindo, coerentemente, ver o Cruzeiro do Sul à noite.

Assim, dia e noite, servimo-nos do mesmo esquema corporal (FIGURA 2). Está, assim, reestabelecida a coerência entre, por um lado, o que se observa dia e noite no Sul e, por outro lado, as regras práticas de orientação que deveriam ser ensinadas nas escolas. Deste modo, estas regras deixariam de serem aquelas “importadas” e impróprias para o Hemisfério Sul, apresentadas e impressas nos livros didáticos publicados – pelo menos no Brasil.

http://www.cdcc.sc.usp.br/cda/ensino-fundamental-astronomia/parte1a.html

Quando está mais alto na sua passagem pelo meridiano S-N, o Cruzeiro do Sul (CS) indica diretamente a direção geográfica sul como aparece na posição central (figura ao lado). Neste caso, o prolongamento do braço maior da cruz intercepta a direção do sul geográfico no horizonte. Como essa posição é um caso particular da circulação do CS, para entender o SULeamento em geral, teremos primeiro que determinar a posição do Polo Sul Celeste (PSC).

É sabido que o PSC está a uma distância de 4,5 vezes o comprimento do braço maior da cruz contado a partir da estrela mais brilhante no pé da cruz (α Crucis ou Estrela de Magalhães). Com o braço esticado e usando os dedos polegar e o indicador para incluir o comprimento do braço maior, alinha-se prolongando por quatro vezes e meia essa distância a partir de α Crucis encontrando o PSC.

http://2.bp.blogspot.com/

Por outro método, sabe-se que o braço menor do CS assim como as duas estrelas (α e β Centauri) que seguem atrás dele, situam-se no mesmo círculo imaginário já referido cujo centro é o PSC. Basta imaginar as mediatrizes dessas duas semirretas se prolongando que seu cruzamento ocorrerá no centro do círculo, ou seja, o PSC .

http://2.bp.blogspot.com/

A figura acima mostra a foto do CS acompanhado por α e β Centauri.

Notas:

[1] Direção do sul geográfico: Pode-se imaginar que as duas estrelas do braço menor da cruz situam-se num círculo concêntrico ao PSC. Nessa circulação, precedem essas duas estrelas outras duas que são alfa e beta da constelação Centauro (α e β Centauri). Se imaginarmos as mediatrizes dos segmentos de retas que unem essas duplas de estrelas, estas vão se encontrar justamente no PSC. Daí, apontando-se e baixando o braço até o horizonte teremos o Sul geográfico.
http://www.casadaciencia.ufrj.br/
http://www.comciencia.br/ (2001)
Observatório Dietrich Schiel – Centro de Divulgação de Astronomia – http://www.cdcc.usp.br/cda

 


 

O SUL e as reconquistas de seus referentes

 As relações sociedade/natureza, Norte/Sul e céu/terra, assim como a hegemonia do Hemisfério Norte, integram algumas das discussões presentes neste site. Na construção e/ou reforço de uma identidade relativa aos que vivem no Hemisfério Sul é muito importante buscarmos nossos referentes, ou seja, tudo aquilo que nos diz respeito.

Essa busca por referentes próprios do Hemisfério Sul tem motivado diversas e importantes manifestações. Uma delas é a “Escola do Sul”, proposta de uma pelo artista e intelectual uruguaio Joaquin Torres Garcia (1874-1949). Bem ilustrado abaixo pelo mapa invertido[1] desenhado por este autor, é exemplar o trecho que o acompanha.

Notas:

[1] Mapa invertido
A Austrália constitui um importante centro de referência para os mapas invertidos (upside-down maps), os quais tiveram alguma difusão entre nós através dos mapas-múndi com base na “Projeção de Peters”. Estes, não só mostravam as áreas reais das superfícies dos continentes sobre a Terra, como também foram editados invertendo as tradicionais posições do Norte e do Sul (Campos 2016). Nesses casos, se alguém disser que o mapa está de cabeça para baixo ou de ponta-cabeça, estará colocando a “cabeça” no Norte.  Com isso, se o normal seria a cabeça/pensamento no Norte e em cima, poderíamos imaginar que os saberes e práticas escorridos para o Sul (inferior) fossem “engolidos” sem que se pensasse no contexto local. Seguem-se referências.
– South-up map orientation
https://en.wikipedia.org/wiki/South-up_map_orientation
– North–South divide
https://en.wikipedia.org/
– The Upsidedown Map Page
It needn’t be a Eurocentric world
https://www.flourish.org/upsidedownmap/


A Escola do Sul – La Escuela del Sur

 

Joaquin Torres Garcia (1935)

Mapa invertido da América – Joaquín Torres García Fonte: TORRES-GARCÍA, 1935

“Uma importante escola de arte teve que ser criada aqui em nosso país. Digo sem nenhuma hesitação: aqui em nosso país. E tenho mil razões para afirmá-lo.

Disse Escola do Sul, porque em realidade, nosso norte é o sul. Não deve haver norte, para nós, a não ser por oposição ao nosso Sul.

Por isso, agora colocamos o mapa ao inverso e então temos justa ideia da nossa posição, e não como querem no resto do mundo. A ponta da América, desde já, prolongando-se, assinala insistentemente o Sul, nosso norte. Igualmente a nossa bússola: inclina-se imperdoavelmente sempre para o Sul, para o nosso polo.

Os navios, quando partem daqui, descem, não sobem como antes, a fim partirem para o norte. Porque o norte agora está abaixo. O nascer, posicionando-nos de frente para o nosso sul, está à nossa esquerda.

Esta retificação era necessária; por isso agora sabemos onde estamos (…)”.

(Campos 2016, p.223)

Referências

CAMPOS, M. D. Por que SULear? Astronomias do Sul e culturas locais. In Perspectivas Etnográficas e Históricas sobre as Astronomias, Priscila Faulhaber, Luiz C. Borges (Orgs.), Anais do IV Encontro Anual da SIAC. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), 2016, p. 215-240. http://www.mast.br/publicacoes_do_mast.html#letra_p. Acesso em 1 nov 2016.

TORRES-GARCIA, Joaquín, The School of the South (Uruguay, February 1935). In: RAMÍREZ, Mari Carmen. (Ed.). El Taller Torres-García: the School of the South and its legacy. Austin: University of Texas Press, 1992 p 53-57.


 

Buscando um Norte às avessas [1]


.

Mariano Baez
Antropólogo
CIESAS Golfo, Xalapa, MX

O conhecimento que se produz a partir dos países centrais parte de um norte situado na metade superior do globo, o qual muitas vezes é aceito sem uma reflexão adequada e sobretudo, sem tomar em conta a diversidade das realidades locais, a prática cotidiana de seus territórios e suas culturas. Os referentes criados por visões e ideologias do Norte em direção ao Sul envolvem aspectos raciais, étnicos, religiosos, sociais e econômicos cujo texto do filósofo argentino Arturo Andrés Roig [2](2002) atesta essa importância.

Existem e se afirmam as desigualdades marcadas pela polaridade entre os dois Hemisférios. Os globos terrestres são artefatos construídos a partir da verticalidade do Norte com o mundo, por isso se instala neles uma base ou pé que não faz sentido se não o de enfatizar a posição superior do Norte, de tal modo que os que habitam no Hemisfério Sul aparecem numa posição inferior, “abaixo” do Equador [3] [4]. O projeto e construção de museus “nortistas” sobre as culturas do Sul é testemunha de uma visão vertical e racista, que se evidencia no caso das produções museográficas concebidas a partir de um modelo de curadoria compartilhada, do qual se pode constatar a importância e a necessidade de se adotar um ponto de vista diferente no projeto e função do trabalho museográfico que tenha como ponto de partida a visão dos próprios povos e suas culturas na concepção e montagem de suas próprias exposições. Os mexicanos num outro exemplo falam de um Norte às avessas quando se referem como “norteada” à pessoa desorientada, que perdeu o rumo.

O SUL não é somente um referente histórico e geográfico, mas pode converter-se numa ferramenta para produzir conhecimentos diferentes e relações sociais, interculturais, simétricas, emancipadoras dentro da diversidade humana. Construir esse SUL, evitando qualquer tipo de hegemonia e relações de poder, implica pensar para além das etnias, as culturas, as raças, as religiões, as fronteiras e conviver com a grande diversidade humana. Pensamos um SUL que não só localiza povos inteiros geograficamente, como também engloba aqueles que vivem numa condição marginal e subalterna dentro do próprio Hemisfério Norte.

SULear é uma proposta para pensar e representar o mundo de forma diferente, alternativa à hegemonia global dos Nortes raciais, étnicos, geográfico-políticos e econômicos que têm construído muros fronteiriços que separam as pessoas, no lugar de pontes que as permitam transitar, comunicar-se y conviver. As fronteiras são territórios de intercâmbio cultural altamente dinâmicos.

Para poder SULear, isto é, traçar trajetórias interculturais e interétnicas procurando referentes não hegemônicos, emancipadores e que fomentem reconhecimento, respeito e convivência entre TODOS os mundos possíveis, são necessárias novas formas de pensar que “ponham o mundo às avessas” e se reconheçam todos os SUIS possíveis.

SULear SULeando

SULear, em consequência, nos leva a promover relações culturais basicamente interculturais e interétnicas que procurem a negociação entre diversas estratégias de controle cultural (Bonfil 1991) {10} que se expressaram originalmente sob tensão e com um grau de assimetria cuja origem está na natureza mesma das relações sociais no capitalismo.

SULear não é mediar e/ou traduzir as relações entre contextos culturais e mentais diferentes. É montar processos comunicativos abertos, francos, transparentes e amigáveis que garantam a convivência baseada no respeito à diversidade humana.

SULear é uma proposta para pensar e representar o mundo de forma diferente, alternativa à hegemonia global dos Nortes culturais, raciais, geográfico-políticos, econômicos e verticais. Não é uma comemoração dos oprimidos, nem uma vitimização dos despossuídos, é um convite a celebrar uma globalização horizontal.

Rio de Janeiro, RJ março de 2016

(Tradução livre de Marcio D’Olne Campos)

Notas:

[1] Texto a partir de gratas conversações entre Mariano Báez Landa (CIESAS, México), Marcio D’Olne Campos (UNIRIO, Brasil) y Luis Carlos Borges (MAST, Brasil).

[2] Roig, Arturo Andrés. “Pensar la mundialización desde el sur”, en Huellas : búsquedas en artes y diseño, Nº 2, pp. 15- 20. Dirección URL del artículo: http://bdigital.uncu.edu.ar/ (Acceso en13/03/16).

[3] Benedetti,Mario “El Sur también existe” http://www.poemas-del-alma.com/ (Acceso en 13/3/2016)

[4] Campos M. D. SURear, NORTEar Y ORIENTar: Puntos de vista desde los hemisferios, la hegemonía y los Indígenas, capítulo 33 In Practicas Otras de Conocimiento(s): Entre crisis, entre guerras, Xóchitl Leyva et al. (orgs), Cooperativa Editorial Retos, San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, México. 2015. Pp. 433 – 458.

Campos M.D.“SULear vs NORTEar: Representações e apropriações do espaço entre emoção, empiria e ideologia”. Série Documenta, año VI, núm. 8. EICOS, Cátedra UNESCO de Desenvolvimento Durável, UNIRIO, Río de Janeiro, 1997 pp. 41-70, http://www.sulear.com.br/texto03.pdf acceso em 14-03-2016

Voltar para o topo